(Por sua atualidade, revisitamos este tema, que foi publicado originalmente no nosso outro blog O Contorno da Sombra - hoje desativado - em maio de 2011)
Em seu livro "Eichmann em Jerusalém" (Companhia das Letras, 1999), a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt, com a perspicácia que lhe é peculiar (e que lhe rendeu muitas polêmicas também), consegue captar as nuances que (de)formaram o caráter da população alemã no período do Terceiro Reich, e resume de maneira brilhante a situação do "homem médio" nazista diante da possibilidade de cometer um ato que ele sabia ser criminoso (de acordo com a lei ou o direito natural ou sua consciência) e pecaminoso (de acordo com a religião que professava):
Em seu livro "Eichmann em Jerusalém" (Companhia das Letras, 1999), a filósofa alemã de origem judaica Hannah Arendt, com a perspicácia que lhe é peculiar (e que lhe rendeu muitas polêmicas também), consegue captar as nuances que (de)formaram o caráter da população alemã no período do Terceiro Reich, e resume de maneira brilhante a situação do "homem médio" nazista diante da possibilidade de cometer um ato que ele sabia ser criminoso (de acordo com a lei ou o direito natural ou sua consciência) e pecaminoso (de acordo com a religião que professava):
E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita "Não matarás", mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: "Matarás", embora os organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem - a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação.(p. 167)
Não é à toa que o subtítulo do livro de Arendt é "um relato sobre a banalidade do mal".
Retrata uma inversão de valores levada aos extremos mais absolutos entre bem e mal, bondade e maldade, dever e consciência, até chegar ao ponto em que um se converte no outro (e o outro se converte no um) de maneira que o único sentimento válido restante é aquele amalgamado pela ideologia do totalitarismo, personificada na suprema vontade do Führer, que se confunde com a vontade de Deus e a vontade do próprio povo, sobrepondo-se a elas e subvertendo também o ditado popular vox populi vox dei ("a voz do povo é a voz de Deus"), que - curiosamente - é a negação da Bíblia desde que Moisés deixou claro que "não seguirás a multidão para fazeres o mal, nem numa demanda darás testemunho, acompanhando a maioria, para perverteres a justiça" (Êxodo 23:2).
Um dos meios utilizados por Hitler foi aproveitar e exacerbar o preconceito antissemita que já estava introjetado em grande parte da população alemã, e onde existe o preconceito já está lá instalada, também, a predisposição para concretizá-lo e levá-lo às últimas consequências, lamentavelmente.
Mesmo assim, entretanto, o resultado é que a tentação muda de figura, não significando mais fazer o que é moralmente errado ou legalmente proibido, mas (in)justamente o contrário.
Ainda que houvesse farta legislação antijudaica (as famigeradas leis de Nuremberg de 1935), mesmo que a consciência o acusasse, o nazista se sentia compelido a fazer o que era mau e errado.
Na sua deturpada visão de mundo, sentir que deveria fazer o que era bom e correto não passava de uma tentação a ser evitada a todo custo, e o resultado disso, quando não era traduzido em atos monstruosos de aniquilação dos diferentes, foi uma gigantesca omissão coletiva que ajudou a matar milhões de pessoas.
É verdade que houve alguns poucos alemães que mantiveram a lucidez de identificar onde estava o perigo (e boa parte deles morreu lutando contra as forças das trevas), mas esta definição de Hannah Arendt sobre a, digamos, "inversão da tentação" não pode jamais ser esquecida, não só por razões religiosas, mas sobretudo para manter vivo o aprendizado (e o exercício) da democracia e da cidadania contra todos aqueles que querem solapá-las.
(Qualquer semelhança com o atual estado da igreja dita "evangélica" no Brasil, e todo o contexto político e discurso de ódio que a engoliu, não é mera coincidência, infelizmente)
Retrata uma inversão de valores levada aos extremos mais absolutos entre bem e mal, bondade e maldade, dever e consciência, até chegar ao ponto em que um se converte no outro (e o outro se converte no um) de maneira que o único sentimento válido restante é aquele amalgamado pela ideologia do totalitarismo, personificada na suprema vontade do Führer, que se confunde com a vontade de Deus e a vontade do próprio povo, sobrepondo-se a elas e subvertendo também o ditado popular vox populi vox dei ("a voz do povo é a voz de Deus"), que - curiosamente - é a negação da Bíblia desde que Moisés deixou claro que "não seguirás a multidão para fazeres o mal, nem numa demanda darás testemunho, acompanhando a maioria, para perverteres a justiça" (Êxodo 23:2).
Um dos meios utilizados por Hitler foi aproveitar e exacerbar o preconceito antissemita que já estava introjetado em grande parte da população alemã, e onde existe o preconceito já está lá instalada, também, a predisposição para concretizá-lo e levá-lo às últimas consequências, lamentavelmente.
Mesmo assim, entretanto, o resultado é que a tentação muda de figura, não significando mais fazer o que é moralmente errado ou legalmente proibido, mas (in)justamente o contrário.
Ainda que houvesse farta legislação antijudaica (as famigeradas leis de Nuremberg de 1935), mesmo que a consciência o acusasse, o nazista se sentia compelido a fazer o que era mau e errado.
Na sua deturpada visão de mundo, sentir que deveria fazer o que era bom e correto não passava de uma tentação a ser evitada a todo custo, e o resultado disso, quando não era traduzido em atos monstruosos de aniquilação dos diferentes, foi uma gigantesca omissão coletiva que ajudou a matar milhões de pessoas.
É verdade que houve alguns poucos alemães que mantiveram a lucidez de identificar onde estava o perigo (e boa parte deles morreu lutando contra as forças das trevas), mas esta definição de Hannah Arendt sobre a, digamos, "inversão da tentação" não pode jamais ser esquecida, não só por razões religiosas, mas sobretudo para manter vivo o aprendizado (e o exercício) da democracia e da cidadania contra todos aqueles que querem solapá-las.
(Qualquer semelhança com o atual estado da igreja dita "evangélica" no Brasil, e todo o contexto político e discurso de ódio que a engoliu, não é mera coincidência, infelizmente)