segunda-feira, 24 de maio de 2021

"Fake news" nos tempos de Jesus


Em tempos bicudos (des)governados por "fake news", não deixa de ser curioso verificar que não há nada de novo no fenômeno da mentira como instrumento do exercício do poder.

No relato da ressurreição de Jesus Cristo segundo Mateus, capítulo 28, quando se torna claro como a luz do sol, para as autoridades políticas e religiosas de plantão, que o túmulo está vazio e não há explicação lógica para isto, uma ideia das trevas lhes vem à cabeça.

Por que não criar uma versão alternativa que justifique o túmulo vazio?

As coisas aconteceram rápido naquela manhã de domingo em Jerusalém.

Quando o poder acordou, já era tarde demais.

Até o versículo 11 de Mateus 28, o cenário da ressurreição já está consumado: mulheres em busca do Cristo, terremoto, anjo, pedra da entrada movida, guardas em desespero, Jesus aparece às mulheres e lhes dá uma nova missão, o convite para um encontro na Galileia, e somente aí os soldados da guarda - despertos do choque - correm para contar o ocorrido às autoridades religiosas.

O pânico se instaura nos altos círculos do poder religioso, e antes que o poder político pudesse imaginar, são essas autoridades que, nos versículos seguintes, tramam o plano com os soldados, urdindo as "fake news" de que se estes perguntados fossem por seus superiores, diriam que o corpo fora roubado pelos discípulos durante a noite.

Algo precisava ser feito urgentemente, para que o poder não se lhes escapasse, nem que fosse mentiroso, paliativo e temporário.

Como deixa claro o ditado popular, "a mentira tem perna curta", e as "fake news" servem para um propósito imediato com prazo de validade. Mais cedo, ou mais tarde - inevitavelmente - a verdade prevalecerá.

É triste ver como muitos líderes religiosos, hoje em dia, não aprenderam a lição.

Talvez lhes tenha escapado o versículo 11 do Salmo 63: "as bocas dos mentirosos serão lacradas" (versão King James Atualizada em português).

Ainda nesta versão bíblica, "prestei atenção e ouvi; contudo, eles não falam o que é verdadeiro.  Ninguém deseja se arrepender de sua impiedade e ainda alegam: 'O que foi que eu fiz?' Cada um se desvia e segue seu próprio e costumeiro caminho, como um cavalo que se lança no ímpeto da batalha" (Jeremias 8:6).

Voltando àquela manhã da ressurreição, ninguém sabe dizer realmente o que ocorreu com os guardas e as autoridades religiosas e políticas depois de constatarem a tumba vazia, a não ser que - de uma forma ou outra - foram atropelados não por cavalos mas pela realidade que quiseram falsear.

Terminaram lacrados.

O fato é que mundo nunca mais foi o mesmo a partir de então.



quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

Quando a tentação é ser bom

Vivemos tempos tão assustadoramente perversos, em que a maldade impera, que é inevitável lembrar de Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judia, que soube como poucos interpretar o que acontecia à sua volta no século passado.


Em seu livro "Eichmann em Jerusalém" (Companhia das Letras, 1999), ela consegue captar as nuances que (de)formaram o caráter da população alemã no período do Terceiro Reich, e resume de maneira brilhante a situação do "homem médio" nazista diante da possibilidade de cometer um ato que ele - de antemão - sabia ser criminoso (de acordo com a lei ou o direito natural ou sua consciência) e pecaminoso (de acordo com a religião que professava):

E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita "Não matarás", mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: "Matarás", embora os organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem - a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação.
(p. 167)

Na deturpada visão de mundo da nação alemã na década de 1930, sentir que deveria fazer o que era bom e correto não passava de uma tentação a ser evitada a todo custo, e o resultado disso, quando não era traduzido em atos monstruosos de aniquilação dos diferentes, foi uma gigantesca omissão coletiva que ajudou a matar milhões de pessoas. 

Nada muito diferente do que vivemos hoje em dia, à nossa volta, com pessoas que julgávamos "boas", pois como lembra também C. S. Lewis, "a maldade não passa de bondade corrompida".