Vivemos tempos tão assustadoramente perversos, em que a maldade impera, que é inevitável lembrar de Hannah Arendt, filósofa alemã de origem judia, que soube como poucos interpretar o que acontecia à sua volta no século passado.
Em seu livro "Eichmann em Jerusalém" (Companhia das Letras, 1999), ela consegue captar as nuances que (de)formaram o caráter da população alemã no período do Terceiro Reich, e resume de maneira brilhante a situação do "homem médio" nazista diante da possibilidade de cometer um ato que ele - de antemão - sabia ser criminoso (de acordo com a lei ou o direito natural ou sua consciência) e pecaminoso (de acordo com a religião que professava):
E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita "Não matarás", mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: "Matarás", embora os organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhecem - a qualidade da tentação. Muitos alemães e muitos nazistas, provavelmente a esmagadora maioria deles, deve ter sido tentada a não matar, a não roubar, a não deixar seus vizinhos partirem para a destruição (pois eles sabiam que os judeus estavam sendo transportados para a destruição, é claro, embora muitos possam não ter sabido dos detalhes terríveis), e a não se tornarem cúmplices de todos esses crimes tirando proveito deles. Mas Deus sabe como eles tinham aprendido a resistir à tentação.(p. 167)
Na deturpada visão de mundo da nação alemã na década de 1930, sentir que deveria fazer o que era bom e correto não passava de uma tentação a ser evitada a todo custo, e o resultado disso, quando não era traduzido em atos monstruosos de aniquilação dos diferentes, foi uma gigantesca omissão coletiva que ajudou a matar milhões de pessoas.
Nada muito diferente do que vivemos hoje em dia, à nossa volta, com pessoas que julgávamos "boas", pois como lembra também C. S. Lewis, "a maldade não passa de bondade corrompida".