terça-feira, 5 de setembro de 2023

Sonhos perigosos




"As pessoas cujos sonhos foram coletados para este livro veem todo o aparato da civilização moderna sendo posto em movimento, veem como elas mesmas passam a fazer parte dele, orientando, mudando ou deformando seu próprio comportamento. Ministérios, postos alfandegários com seus vigias, escolas com seus boletins e exames, casernas, prisões, os correios ou a central de eletricidade, hospitais e delegacias, chefes e técnicos... todo esse aparato surge não apenas para facilitar ou regular o dia a dia moderno, mas também para fazer com que as pessoas percam sua integridade pessoal. Nos sonhos, mostra-se de forma angustiante como isso acontece com a ajuda das organizações nazistas. As pressões para cantar junto, saudar, falar em coro e participar... pressões às quais as pessoas tentam escapar, à medida que se subjugam a elas. Os próprios pensamentos são manipulados — adaptando-se ao teor dos ditos propagandísticos ou sendo totalmente absorvidos por ele. Todas as variantes de obrigação estão presentes aqui: deste “ter que falar” até “ter que calar-se” — e mesmo a proibição de sonhar, como última consequência do terror nesse meio que é o sonho.

O que temos aqui são sonhos de perseguidos e, sobretudo, daqueles que se adaptaram ou que queriam se adaptar e não podiam. A pessoa é isolada e, para não desmoronar, subjuga-se à pressão da conformidade, que lhe permite sobreviver às custas de sua liberdade interior. Ao se inserir no sistema do absurdo, ela se livra aparentemente de seu próprio desespero, do desdobramento de personalidade. Dessa forma, torna-se também possível sobreviver na perversão. Tudo isso é desvendado pelo sonho: ele não mostra a realidade exterior, como esta se apresenta no dia a dia, mas sim uma estrutura nela escondida. Os sonhos revelam aquelas forças propulsoras secretas e a obrigação de se adaptar a partir das quais as ondas de entusiasmo foram colocadas em movimento, carregando ou arrastando as pessoas na época. Eles apresentam ao mesmo tempo, sem piedade, uma conta fatal, que não pode ser paga. Nesse sentido, nossas testemunhas foram verdadeiramente realistas."

(Reinhart Koselleck, no posfácio do livro “Sonhos no Terceiro Reich” de Charlotte Beradt, Ed. Três Estrelas, 2017, pág. 176/177)


sexta-feira, 14 de julho de 2023

Martele! Martele!

 


"Caberia perguntar se essa insistência constante na infâmia e na inferioridade dos judeus, essa hostilidade contra eles, não tenderia a provocar um efeito atenuante e contraditório. A pergunta poderia logo ser ampliada para incluir o valor e a durabilidade de toda a propaganda de Goebbels. Poderia gerar outra dúvida: um questionamento ao pensamento nazista no campo da psicologia de massas. Mein Kampf, de Hitler, insiste em afirmar a necessidade de manter a massa na ignorância e explica claramente como intimidá-la contra qualquer reflexão. Um dos principais recursos para isso é martelar sempre, repetidamente, as mesmas teorias simplistas que não podem ser rebatidas. Quantas partes da alma do intelectual (sempre isolado) também pertencem às massas que o cercam!"

(Victor Klemperer, em “LTI – A Linguagem do Terceiro Reich”, Ed. Contraponto, 2009, pág. 280)




quarta-feira, 7 de junho de 2023

Discursos tóxicos

 


O nazismo se embrenhou na carne e no sangue das massas por meio de palavras, expressões e frases impostas pela repetição, milhares de vezes, e aceitas inconsciente e mecanicamente. Costuma-se considerar como meramente estética e inofensiva a citação de Schiller sobre von der gebildeten Sprache, die für dich dichtet und denkt [a língua culta, que poetiza e pensa por ti]. Um verso bem redigido, em uma “língua culta”, não pode ser aceito como prova suficiente da força poética do autor. Em uma língua assim, não é difícil adotar uma aura de poeta ou pensador.

Mas a língua não se contenta em poetizar e pensar por mim. Também conduz o meu sentimento, dirige a minha mente, de forma tão mais natural quanto mais eu me entregar a ela inconscientemente. O que acontece se a língua culta tiver sido constituída ou for portadora de elementos venenosos? Palavras podem ser como minúsculas doses de arsênico: são engolidas de maneira despercebida e parecem ser inofensivas; passado um tempo, o efeito do veneno se faz notar. Se, por longo tempo, alguém emprega o termo “fanático” no lugar de “heroico e virtuoso”, ele acaba acreditando que um fanático é mesmo um herói virtuoso, e que sem fanatismo não é possível ser herói. As palavras fanático e fanatismo não foram criadas pelo Terceiro Reich, mas ele lhes adulterou o sentido; em um só dia elas eram empregadas mais do que em qualquer outra época.

(Victor Klemperer, em “LTI – A Linguagem do Terceiro Reich”, Ed. Contraponto, 2009, págs. 55/56)


quinta-feira, 27 de abril de 2023

Herança e tolerância

 


Em seu livro de crônicas “O Trauma Alemão, Experiências e Reflexões 1938-2000” (Ed. Bertrand Brasil, 2007), a jornalista, escritora e historiadora austríaca de origem húngara Gitta Sereny (1921-2012) traz uma série de relatos de figuras nazistas e personalidades ligadas ao período, marcados por profundas reflexões a respeito do que o estudo dessa catástrofe continua ensinando para a humanidade.

Trata-se exatamente disso: Gitta Sereny teve a rara habilidade de examinar o seu tempo e extrair de seus entrevistados o máximo possível de verdade e humanidade ainda que diante de tanta perversidade.

Apesar de essencial, não é exatamente um livro fácil de ler.

Um capítulo é particularmente sombrio, “Os Filhos do Reich” (págs. 330/354), em que o leitor se depara com as tragédias pessoais de alguns descendentes de expoentes macabros do III Reich, como os filhos de Reinhard Heydrich e Martin Bormann.

O filho mais velho de Bormann se chamava Martin Adolf Bormann (1930-2013) e era considerado “o afilhado favorito de Hitler”.

Os rastros de seu pai se perderam na madrugada de 2 de maio de 1945, quando o secretário particular do Führer teria sido visto morto ao tentar fugir a pé do bunker de Berlim.

Seus restos mortais foram finalmente identificados mediante exame de DNA somente em 1998.

No dia em que seu pai morreu, Martin Adolf Bormann tinha 15 anos de idade e por pouco não se matou junto com 8 pessoas do grupo com o qual estava escondido.

O filho fugiu e foi criado por uma devota família austríaca, o que o fez abraçar a fé a partir de 1947, renegando o passado nazista, tornando-se padre católico em 1958 e renunciando ao sacerdócio em 1971.

No último encontro do grupo de filhos de nazistas “ilustres” monitorado por um psicólogo israelita, Dan Bar-On (1938-2008), realizado no final da década de 1980, Martin Adolf deixou seu alerta (pág. 354):

“Mas acho que temos que ficar muito atentos”, advertiu Martin Bormann. “Temos de deter absurdos onde quer que os notemos. No instante em que ouvirmos alguém dizer algo que ofenda a dignidade humana, quer isso seja contra estrangeiros, tal como ocorre muito frequentemente agora na Alemanha Ocidental, quer contra pessoas de outras crenças ou de outra cor, devemos protestar e discutir isso. Atitudes como essas jamais deverão ser ignoradas. Cerca de 50 anos atrás”, prosseguiu, “algumas pessoas iniciaram um processo de horrores, mas muitos, mesmo sabendo disso, toleraram-no. Tudo começou exatamente como agora: com pichações, piadas vulgares e troca de olhares maliciosos. Então, foram os judeus; agora, são os turcos e vietnamitas. A discriminação só será detida se aceitarmos a ideia da responsabilidade pessoal, para que não se permita jamais que isso fique sem contestação. Acho que isso é nossa obrigação sim, como pais de nossos filhos”.

quarta-feira, 1 de março de 2023

Quando até os animais se desorientam diante da perversidade humana

 


Um dos massacres (pogroms) mais perversos e emblemáticos da Segunda Guerra Mundial ocorreu na cidade de Jassy (“Iași” – se pronuncia “iáshi”), na Romênia.

Pogrom é a transliteração da palavra originada do russo погром, que se incorporou ao léxico de todos os idiomas mais falados do planeta, e que significa a perseguição violenta e deliberada de um grupo étnico ou religioso, aprovada, tolerada ou incentivada pelas autoridades locais, especialmente contra os judeus.

Sinônimo de genocídio, portanto.

A maldade alcançou magnitude tão inimaginável no pogrom de Iași que nem os animais — no caso os cachorros — conseguiram lidar com tamanho terror.

A Romênia era aliada da Alemanha nazista, e o general Ion Victor Antonescu (1882-1946), inicialmente seu primeiro-ministro desde 1940, depois ditador ("conducător", que quer dizer “condutor”), enviou as tropas romenas para se aliarem às alemãs na invasão da União Soviética lançada na madrugada de 22 de junho de 1941 e que ficou conhecida como “Operação Barbarossa”.

Houve uma resistência inicial do exército vermelho estacionado na então limítrofe república soviética da Moldávia, que bombardeou a cidade fronteiriça romena de Iași, onde havia muitos grupos fascistas e antissemitas.

A retaliação das autoridades e da população local contra os judeus foi imediata, acusando-os de serem “traidores comunistas”.

Há testemunho de sobrevivente em vídeo de que — um dia antes do início do massacre — foram distribuídos folhetos com a frase “judeu bom é judeu morto”.

Judeus sendo conduzidos à morte pelas ruas de Iași

O pogrom de Iași ocorreu entre os dias 28 de junho e 6 de julho de 1941, tornando-se um dos primeiros atos abomináveis do holocausto judeu que ceifou milhões de vidas e horrorizou o mundo.

Estima-se que dos 728 mil romenos judeus (4% do total da população) antes da guerra, pelo menos 270 mil foram exterminados naquele período tenebroso, e não só por alemães nazistas.

No pós-guerra, Antonescu foi julgado, condenado à morte e executado por fuzilamento no dia 1º de junho de 1946, por crimes como o genocídio iniciado em Iași, descrito com tintas fortes por Mark Mazower em seu livro “O Império de Hitler”:

Na véspera da Barbarossa, Antonescu encontrou-se outra vez com Hitler, e pouco depois organizou unidades especiais para instigar a limpeza étnica na região norte do país. Em particular, deu instruções específicas ao Exército e ao Ministério do Interior para organizar a “evacuação” de 45 mil judeus na cidade fronteiriça de Jassy, e as preparações, baseadas em eventos semelhantes mas de menor escala do ano anterior, logo foram concluídas. As portas das casas dos cristãos na cidade foram marcadas com uma cruz para ser diferenciadas, e espalharam-se rumores intencionais de que paraquedistas soviéticos haviam pousado na cidade. Quando o pogrom eclodiu, na noite de 28 para 29 de junho, soldados, policiais, guardas e centenas de civis invadiram as ruas, arrombando casas e levando os moradores presos para o quartel-general da polícia. Muitos judeus forma atacados e mortos no local, mulheres foram estupradas. Mais de mil foram fuzilados no interior do quartel-general da polícia quando os alemães abriram fogo a esmo. Alguns dos sobreviventes foram espancados e torturados antes de ser tangidos para vagões sem ventilação, excedendo a capacidade em três vezes, entre corpos vivos e mortos. Enquanto o trem transportava lentamente sua carga humana pelas planícies no calor do verão, mais de 2700 morreram de desidratação, com os corpos sendo jogados em plataformas de estações ou nos campos. Ao todo, entre 13 mil e 15 mil pessoas morreram.

O jornalista italiano Curzio Malaparte, que por acaso estava em visita a Jassy na época, acordou na manhã seguinte:

Fui até a janela e olhei para a rua Lapusneanu. Espalhados por ali havia corpos humanos em estranhas posições. Os bueiros estavam cobertos de cadáveres amontoados uns sobre os outros. Centenas de corpos estavam jogados no pátio da igreja. Bandos de cães rodeavam, ressabiados, farejando os mortos à procura de seus donos; pareciam cheios de pena e respeito; moviam-se em torno daqueles pobres cadáveres com delicadeza, como se não quisessem pisar naqueles rostos sanguinolentos ou naquelas mãos rígidas. Equipes de judeus, vigiados por soldados e policiais armados de metralhadoras, faziam o trabalho de por os corpos para um dos lados, abrindo o meio da estrada e empilhando os cadáveres ao longo das paredes para liberar o tráfego. Caminhões alemães e romenos carregados de corpos continuavam partindo. Uma criança morta estava sentada na calçada perto da lustrageria, as costas apoiadas na parede e a cabeça caída no ombro [...] A estrada estava atulhada de gente — hordas de soldados e policiais, grupos de homens e mulheres e bandos de ciganos de cabelos longos e anelados conversavam entre si divertida e ruidosamente enquanto pilhavam os mortos, erguendo-os, rolando-os, virando-os de lado para tirar seus casacos, calças e roupas de baixo; pés eram prensados sobre barrigas mortas para ajudar a arrancar os sapatos; pessoas acorriam para participar do butim; outros se afastavam com pilhas de vestuário nos braços. Era um alvoroço alegre, uma ocasião feliz, uma festa e um mercado, tudo ao mesmo tempo.

(Mark Mazower, “O Império de Hitler”, Ed. Companhia das Letras, 2013, págs. 396/397)

Execução do general-ditador Ion Antonescu



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Mirmídones



O alemão Thomas Mann (1875-1955, Prêmio Nobel de Literatura de 1929, filho de mãe brasileira, caso você não saiba) escreveu aquele que eu humildemente considero o melhor livro que li na vida, “A Montanha Mágica”, que — de tão bom — me inspirou a aprender alemão para lê-lo no original (“Der Zauberberg", 1924).

Thomas Mann foi um dos maiores opositores de Hitler, tendo se exilado na Suíça já em 1933 e emigrado para os Estados Unidos em 1938, de onde promoveu — sob o patrocínio da BBC de Londres — as transmissões radiofônicas contra o regime nazista de 1940 a 1945.

Essas mensagens foram reunidas no livro “Ouvintes Alemães” ("Deutsche Hörer", Ed. Zahar, 2009, também encontrado como "Discursos contra Hitler"), de onde se extrai o seguinte trecho de fevereiro de 1941 (págs. 30/31), que comenta o discurso de Hitler no Sportspalast de Berlim no dia 30 de janeiro de 1941, repleto de anedotas infames:

Insuperável. Essa e outras preciosidades humorísticas que geraram gritos de alegria no Palácio de Esportes repleto de mirmídones passarão de um século a outro – a não ser que o pudor humano o impeça. Pois não há, de fato, algo que ofende insuportavelmente o pudor, algo de idiotamente obsceno, em ser tão engraçado diante das condições do mundo atual, condições pelas quais o senhor Hitler deve se sentir responsável? Deveras, esse é o momento oportuno para se fazer piadas idiotas! Calamidades e angústias, caçadas humanas, expatriações, desespero e suicídio, sangue e lágrimas enchem a Terra. Nações orgulhosas de suas histórias, nações às quais a humanidade muito deve e que viviam em bem-estar, encontram-se despedaçadas, violentadas, pilhadas. Outras conduzem uma batalha de vida ou morte para impedir tal destino. Outras ainda se veem obrigadas a sacrificar suas liberdades à liberdade e empregar todos os seus recursos na preparação para a batalha. O próprio povo alemão, que há oito anos vive em guerra e em péssimas condições, em meio a um continente destroçado, ameaçado pela fome e pelas epidemias, olha com um horror secreto para um futuro que lhe promete apenas guerra, uma guerra após a outra, uma guerra interminável, uma privação interminável e ao mesmo tempo o ódio e a maldição do mundo. Seu líder, no entanto, faz gracejos com isso.
Essa foi uma das razões pelas quais o discurso causou uma impressão tão abominável aqui. Outra coisa que causa má impressão, e há muito tempo, é a vaidade infantil desse homem que o faz dizer “eu” sem parar e sem se dar conta de que essa ênfase na primeira pessoa, exatamente no caso de sua pessoa, é uma insuportável falta de gosto e de tato, tanto estética quanto moral. Pois é intolerável que alguém em cuja pele ninguém gostaria de estar diga constantemente “eu”.

Thomas Mann chama de “mirmídones” os espectadores do discurso do Führer naquele dia de infâmia no Sportspalast de Berlim.

Segundo a Wikipedia, “os mirmidões ou mirmídones foram um dos lendários povos tessálicos que acompanharam Aquiles à Guerra de Troia. O nome deles deriva do grego myrmex que significa formiga”.

Os dicionários de português traduzem mirmídones como “homúnculos” ou “lacaios servis”.

Enfim, tudo muito atual.

Nada de novo no front!