sexta-feira, 24 de fevereiro de 2023

Mirmídones



O alemão Thomas Mann (1875-1955, Prêmio Nobel de Literatura de 1929, filho de mãe brasileira, caso você não saiba) escreveu aquele que eu humildemente considero o melhor livro que li na vida, “A Montanha Mágica”, que — de tão bom — me inspirou a aprender alemão para lê-lo no original (“Der Zauberberg", 1924).

Thomas Mann foi um dos maiores opositores de Hitler, tendo se exilado na Suíça já em 1933 e emigrado para os Estados Unidos em 1938, de onde promoveu — sob o patrocínio da BBC de Londres — as transmissões radiofônicas contra o regime nazista de 1940 a 1945.

Essas mensagens foram reunidas no livro “Ouvintes Alemães” ("Deutsche Hörer", Ed. Zahar, 2009, também encontrado como "Discursos contra Hitler"), de onde se extrai o seguinte trecho de fevereiro de 1941 (págs. 30/31), que comenta o discurso de Hitler no Sportspalast de Berlim no dia 30 de janeiro de 1941, repleto de anedotas infames:

Insuperável. Essa e outras preciosidades humorísticas que geraram gritos de alegria no Palácio de Esportes repleto de mirmídones passarão de um século a outro – a não ser que o pudor humano o impeça. Pois não há, de fato, algo que ofende insuportavelmente o pudor, algo de idiotamente obsceno, em ser tão engraçado diante das condições do mundo atual, condições pelas quais o senhor Hitler deve se sentir responsável? Deveras, esse é o momento oportuno para se fazer piadas idiotas! Calamidades e angústias, caçadas humanas, expatriações, desespero e suicídio, sangue e lágrimas enchem a Terra. Nações orgulhosas de suas histórias, nações às quais a humanidade muito deve e que viviam em bem-estar, encontram-se despedaçadas, violentadas, pilhadas. Outras conduzem uma batalha de vida ou morte para impedir tal destino. Outras ainda se veem obrigadas a sacrificar suas liberdades à liberdade e empregar todos os seus recursos na preparação para a batalha. O próprio povo alemão, que há oito anos vive em guerra e em péssimas condições, em meio a um continente destroçado, ameaçado pela fome e pelas epidemias, olha com um horror secreto para um futuro que lhe promete apenas guerra, uma guerra após a outra, uma guerra interminável, uma privação interminável e ao mesmo tempo o ódio e a maldição do mundo. Seu líder, no entanto, faz gracejos com isso.
Essa foi uma das razões pelas quais o discurso causou uma impressão tão abominável aqui. Outra coisa que causa má impressão, e há muito tempo, é a vaidade infantil desse homem que o faz dizer “eu” sem parar e sem se dar conta de que essa ênfase na primeira pessoa, exatamente no caso de sua pessoa, é uma insuportável falta de gosto e de tato, tanto estética quanto moral. Pois é intolerável que alguém em cuja pele ninguém gostaria de estar diga constantemente “eu”.

Thomas Mann chama de “mirmídones” os espectadores do discurso do Führer naquele dia de infâmia no Sportspalast de Berlim.

Segundo a Wikipedia, “os mirmidões ou mirmídones foram um dos lendários povos tessálicos que acompanharam Aquiles à Guerra de Troia. O nome deles deriva do grego myrmex que significa formiga”.

Os dicionários de português traduzem mirmídones como “homúnculos” ou “lacaios servis”.

Enfim, tudo muito atual.

Nada de novo no front!