quinta-feira, 27 de abril de 2023

Herança e tolerância

 


Em seu livro de crônicas “O Trauma Alemão, Experiências e Reflexões 1938-2000” (Ed. Bertrand Brasil, 2007), a jornalista, escritora e historiadora austríaca de origem húngara Gitta Sereny (1921-2012) traz uma série de relatos de figuras nazistas e personalidades ligadas ao período, marcados por profundas reflexões a respeito do que o estudo dessa catástrofe continua ensinando para a humanidade.

Trata-se exatamente disso: Gitta Sereny teve a rara habilidade de examinar o seu tempo e extrair de seus entrevistados o máximo possível de verdade e humanidade ainda que diante de tanta perversidade.

Apesar de essencial, não é exatamente um livro fácil de ler.

Um capítulo é particularmente sombrio, “Os Filhos do Reich” (págs. 330/354), em que o leitor se depara com as tragédias pessoais de alguns descendentes de expoentes macabros do III Reich, como os filhos de Reinhard Heydrich e Martin Bormann.

O filho mais velho de Bormann se chamava Martin Adolf Bormann (1930-2013) e era considerado “o afilhado favorito de Hitler”.

Os rastros de seu pai se perderam na madrugada de 2 de maio de 1945, quando o secretário particular do Führer teria sido visto morto ao tentar fugir a pé do bunker de Berlim.

Seus restos mortais foram finalmente identificados mediante exame de DNA somente em 1998.

No dia em que seu pai morreu, Martin Adolf Bormann tinha 15 anos de idade e por pouco não se matou junto com 8 pessoas do grupo com o qual estava escondido.

O filho fugiu e foi criado por uma devota família austríaca, o que o fez abraçar a fé a partir de 1947, renegando o passado nazista, tornando-se padre católico em 1958 e renunciando ao sacerdócio em 1971.

No último encontro do grupo de filhos de nazistas “ilustres” monitorado por um psicólogo israelita, Dan Bar-On (1938-2008), realizado no final da década de 1980, Martin Adolf deixou seu alerta (pág. 354):

“Mas acho que temos que ficar muito atentos”, advertiu Martin Bormann. “Temos de deter absurdos onde quer que os notemos. No instante em que ouvirmos alguém dizer algo que ofenda a dignidade humana, quer isso seja contra estrangeiros, tal como ocorre muito frequentemente agora na Alemanha Ocidental, quer contra pessoas de outras crenças ou de outra cor, devemos protestar e discutir isso. Atitudes como essas jamais deverão ser ignoradas. Cerca de 50 anos atrás”, prosseguiu, “algumas pessoas iniciaram um processo de horrores, mas muitos, mesmo sabendo disso, toleraram-no. Tudo começou exatamente como agora: com pichações, piadas vulgares e troca de olhares maliciosos. Então, foram os judeus; agora, são os turcos e vietnamitas. A discriminação só será detida se aceitarmos a ideia da responsabilidade pessoal, para que não se permita jamais que isso fique sem contestação. Acho que isso é nossa obrigação sim, como pais de nossos filhos”.